A força do machado
- Vinicius de Oliveira
- 30 de jun. de 2021
- 4 min de leitura

Era a segunda vez que passava pela sala de cirurgia por conta da escoliose, provocada por uma amiotrofia espinhal, que enfraquece a estrutura muscular e, somada ao peso do corpo, provoca a torção da coluna. Viu os irmãos, as primas e a mãe se revezarem por três meses à beira da cama hospitalar, enquanto esperava cicatrizarem as costas, que agora eretas, o escoram numa cadeira gamer frente a milhares de espectadores.
O controle acinzentado de um Nintendo 64 foi o primeiro a conhecer a paixão de Gabriel por jogos de videogame, sempre acompanhado pelos dois irmãos mais velhos. “Jogávamos bastante Mario 64, Mario Party e Pokémon. Meu lugar na roda era garantido, seja para assistir ou jogar com meus irmãos, que volta e meia traziam amigos pra casa.”
Aos nove anos, viu as mãos largarem o controle acinzentado para que, com as bolas coloridas, pudesse jogar a bocha, esporte com modalidade paralímpica e fundamental para que mais tarde se tornasse streamer. “Por falta de transporte acabei tendo de parar com a bocha, foi quando me inspirei nos youtubers que jogavam Minecraft e surgiu a vontade de abrir um canal pela primeira vez.”
O primeiro nome escolhido para representá-lo no ambiente virtual nasceu das bocas dos irmãos mais velhos que, por tanto dizerem que o caçula tinha uma cabeça grande, o incentivaram a se chamar “Cabeça.” “Sou quem sou atualmente porque eles não tiveram medo de serem meus irmãos de verdade. Não deixaram de brincar comigo por ser deficiente.” Acabou desistindo de se tornar um youtuber, o apelido não durou por muito tempo no ambiente virtual, mas a paixão pelos e-sports crescia.
Passou a frequentar eventos gamers, indo pela primeira vez ao Brasil Game Show, a popular BGS, em 2014. Apesar da imersão cada vez mais intensa nos jogos virtuais, Gabriel foi surpreendido por um encontro com sua antiga equipe de bocha paralímpica no mesmo ano. Descobriu algumas mudanças no projeto esportivo, entre elas a disponibilização de uma van por conta da prefeitura de Mogi das Cruzes, que o buscava em casa e o transportava na volta dos treinos, podendo levá-lo a competir novamente.
O retorno aos treinos fez com que se destacasse no esporte em 2015, até que uma forte pneumonia o derrubou. “Fiquei internado três vezes, sendo que entre a primeira e a segunda tive uma parada respiratória, que fez minha saturação sanguínea ir a 30%, quando o normal é que estivesse em 90%.”
Foram três meses de recuperação até ficar sabendo de um evento para inclusão entre os jovens do Ensino Médio. Mesmo com a pausa no treinamento por tanto tempo, Gabriel resolveu dar sopa para a sorte. Participou e venceu uma seletiva para a Paralimpíada de São Paulo, indo jogar no Nordeste. Ao fim do novo campeonato, terminou em terceiro lugar e passou a receber uma bolsa atleta.
A bocha que fizera Gabriel atravessar o país pôde transportá-lo das jogatinas solitárias para dentro das telas da dezena de milhares de seguidores que o acompanham como streamer. “Em 2017, percebi que com o dinheiro conquistado com a bocha finalmente poderia comprar meu primeiro computador e, assim, começar a fazer lives.”
Mas não foram apenas as transmissões que possibilitaram a conquista de tantos seguidores. A presença de Gabriel nos eventos gamers desde 2014 o ajudou a conhecer importantes nomes dentro do cenário. “Antes mesmo de me tornar Machadinho, como meus irmãos sempre me levavam nesses eventos, acabei sendo influente entre os youtubers e streamers.”
Durante o ano de 2018 viu os irmãos se afastarem por conta de trabalho e estudo, sem poder acompanhá-lo nos eventos. Foi quando Machadinho passou a se desanimar, chegando a flertar com um quadro de depressão, até que um de seus primos começou a embarcar nas viagens. Apesar disso, viu que não apenas mãos familiares se estendiam para que conseguisse finalmente se desenvolver na comunidade gamer.
No ano seguinte, contando com a ajuda de nomes importantes do cenário, como o pro player FalleN e o streamer Gaules, realizou uma vaquinha virtual para conseguir comprar uma nova cadeira de rodas, mais leve, desmontável e motorizada, que facilitasse as viagens. “Nessa época fui bastante divulgado, ficando ainda mais conhecido pela galera dos eventos e inclusive recebendo convite da Blizzard, que possibilitou uma das melhores viagens com a minha família.”
Sendo notado por praticamente gabaritar os principais campeonatos de esportes eletrônicos, não demorou até que passasse a encontrar, também nesses espaços, um dos temas mais importantes em sua caminhada: a causa das pessoas com deficiência. Invadia multidões evento a evento, mas não enchia os dedos de uma só mão quando pensava em exemplos que o representassem no meio.
Foi quando percebeu, na aba de notificações, a mensagem de Victor Gabriel, conhecido como o Cadeirante do CS. Bastaram poucas mensagens para que decidissem um dos projetos que mais orgulham Machadinho, o Juntos Somos Mais Fortes, que tem o intuito de potencializar a representatividade no ambiente gamer. “A gente aproveitou os contatos que tínhamos, como a equipe do FalleN, e colocamos em prática essa ideia que pode levar mais deficientes para dentro do cenário.”
Apesar da comunidade PCD ainda ser tímida em relação a outros grupos minoritários, como o LGBT, já são mais de 40 streamers com deficiência, de acordo com Gabriel. “Fico muito feliz de ser um porta voz desse movimento. Espero em breve poder realizar um campeonato apenas para pessoas com deficiência.”
Enquanto o vácuo de representatividade ainda não se preenche com novas figuras, o cadeirante mantém a postura firme herdada desde os tempos de escoliose e com o fôlego de quem bateu uma pneumonia quase mortal. Entre campanhas nas redes sociais e através de jogos virtuais, o streamer busca materializar o Machado, sobrenome e homenagem ao avô, em busca de quebrar quaisquer paradigmas que o impõem no mundo real.
Matéria publicada no site https://grupo4transmidias.wixsite.com/esports
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